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19 de Abril de 2024

STJ decide sobre transferência para a reserva remunerada de primeira transexual da Força Aérea Brasileira

Publicado por Mariana Candido
há 4 anos

Por Mariana Candido [i]

O Ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Relator Herman Benjamin, em julgamento de Agravo interposto pela União contra decisão de inadmissão de Recurso Especial, não conheceu do recurso extremo, mantendo o acórdão prolatado pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), cuja ementa foi vazada nestes termos:

ADMINISTRATIVO. MILITAR DA AERONÁUTICA TRANSEXUAL. REFORMA EX OFFICIO POR INCAPACIDADE DEFINITIVA PARA O SERVIÇO MILITAR. NULIDADE DO ATO. PROMOÇÕES. 1. O ato administrativo que transferiu a autora para a reserva remunerada, com proventos proporcionais ao tempo de serviço, com fundamento na sua transexualidade, configurou-se em um ato desprovido de razoabilidade, posto que fundamentado em sua incapacidade definitivamente para o serviço militar, desvinculado, portanto, do que foi apurado nos autos, onde restou comprovada, por meio de perícia médica judicial, a plena higidez física e mental da autora. 2. Tendo sido decretada a nulidade do ato conduziu a autora à inatividade, ela não pode ser prejudicada em seu direito às promoções que eventualmente teria direito se na ativa estivesse, no período em que ficou indevidamente afastada do serviço ativo, nos expressos termos dos artigos 59 e 60 da Lei n. 6.880/80, agora na condição pessoa do sexo feminino. 3. A despeito da inexistência de efetivos femininos no Quadro de Cabos da Aeronáutica, em homenagem à igualdade e dignidade da pessoa humana, à Autora devem ser conferidas todas as promoções que porventura teria direito, na condição de pessoa do sexo masculino, até o último posto possível na carreira. 4. Diante da ação cautelar acessória e vinculada a este processo, cumpre esclarecer que a permanência da Autora no imóvel funcional em que reside - o que não compõe o objeto deste recurso, pois, muito embora tenha existido o pedido, não houve decisão nem recurso -, será dependente das eventuais promoções a que ela tenha direito. Isso porque dependendo de sua graduação, estende-se o seu tempo de permanência na Força, conforme o art. 98 da Lei 6.880/80. 5. O militar, na condição de excedente, aqui referida em aplicação analógica, por ter cessado o motivo que determinou sua reforma por incapacidade definitiva, além de retornar ao respectivo Corpo, Quadro, Arma ou Serviço, concorre, respeitados os requisitos legais, em igualdade de condições e sem nenhuma restrição, a qualquer cargo militar, bem como à promoção e à quota compulsória. 5. Deve ser reconhecido o direito da autora às eventuais promoções por tempo de serviço no período em que esteve ilegalmente afastada do serviço castrense, pois ela é considerada, para todos os efeitos, como em efetivo serviço, por expressa previsão legal. 6. Razoável a fixação da verba honorária em R$ 2.000,00 (dois mil reais), à luz da jurisprudência firmada a respeito do tema, que vem condenando a União no percentual de 10% sobre o valor da condenação. 7. Apelação da União e remessa oficial a que se nega provimento. Apelação da Autora provida.” (AC 0025482-96.2002.4.01.3400, DESEMBARGADOR FEDERAL NÉVITON GUEDES, TRF1 - PRIMEIRA TURMA, e-DJF1 13/05/2014 PAG 88.)

Trata-se do ARESP nº 1.552.655 – DF[ii], que garantiu à Maria Luiza da Silva – reconhecida como primeira transexual dos quadros da Força Aérea Brasileira (FAB) – o direito de ser transferida para a reserva remunerada, com os proventos integrais da última graduação da carreira militar no Quadro de Praças, a de Subtenente.

O referido acórdão que foi confirmado monocraticamente pelo Ministro Herman Benjamin, por sua vez, foi conclusivo no sentido de que “o ato administrativo que transferiu a autora para a reserva remunerada, com proventos proporcionais ao tempo de serviço, com fundamento na sua transexualidade, configurou-se em um ato desprovido de razoabilidade, posto que fundamentado em sua incapacidade definitiva para o serviço militar, desvinculado, portanto, do que foi apurado nos autos, onde restou comprovada, por meio de perícia médica judicial, a plena higidez física e mental da autora”.

A conduta praticada pela FAB, além de arbitrária, foi totalmente preconceituosa, já que a cirurgia de mudança de sexo realizada pela militar não a tornou, em hipótese alguma, incapaz definitivamente para o serviço castrense a ensejar sua reforma “compulsória”, tal como ratificou a perícia médica realizada nos autos, em Primeira Instância, razão porque o ato administrativo datado do ano de 2000, que reformou a Autora com os proventos proporcionais ao tempo de serviço (por ter considerado a suposta incapacidade da Autora sem relação de causa e efeito com serviço militar, incidindo na espécie o inciso VI do art. 108 da Lei nº 6.880) foi julgado ilegal pelo Poder Judiciário.

Aliás, o TRF da 1ª Região reconheceu não só a nulidade do ato de reforma da Autora (reconhecida também em 1ª Instância), como determinou a efetivação das promoções que eventualmente ela teria direito, se na ativa estivesse, no período em que ficou indevidamente afastada do serviço ativo, por culpa exclusiva da Administração Militar, nos termos dos artigos 59 e 60, da Lei nº 6.880/80, agora na condição de pessoa do sexo feminino, até a última graduação no Quadro de Praças (cabo → Subtentente).

Isso porque, “apesar da inexistência de efetivos femininos no Quadro de Cabos da Aeronáutica, em homenagem à igualdade e à dignidade da pessoa humana, à Autora devem ser conferidas todas as promoções que porventura teria direito, na condição de pessoa do sexo masculino, até o último posto possível na carreira”.

Decidiu a Egrégia Corte de Justiça que a identidade de gênero não pode ser considerada incapacidade definitiva, nem acidente ou enfermidade, sob pena de ofender o direito constitucional à Saúde (art. 196, CF/88), o princípio da não discriminação (art. , IV, CF/88) e a própria dignidade humana (art. , III, CF/88), num dos seus desdobramentos mais sensíveis: o respeito à capacidade dos transexuais de autodeterminarem a sexualidade.

Posto isso, considerando que foi tirado da Autora o direito de progredir na carreira, devido a um ato administrativo ilegal, nulo e baseado em irrefutável discriminação, considerando ainda que ela atingiu a idade máxima de permanência no Quadro de Praças, reconheceu o STJ que deve ser reconhecido o seu direito à transferência para a reserva remunerada, com os proventos integrais correspondentes à graduação de Subtenente, de acordo com o art. 98, I, c, do Estatuto dos Militares.

Registre-se que a história de “Maria Luiza” é contada em documentário homônimo do cineasta brasiliense Marcelo Díaz.

Diante dessas breves considerações, em que pese tratar-se de uma decisão monocrática, da qual ainda caberá recurso ao Colegiado da Segunda Turma, o que vemos é mais uma vitória contra o preconceito e discriminação de pessoas em relação à sua orientação sexual, cujo tabu vem sendo cotidianamente quebrado pela Sociedade e, principalmente, pelo Poder Judiciário, neste ato representado pelo Superior Tribunal de Justiça.


[i] Advogada, inscrita na Ordem dos Advogados Seccional do Distrito Federal, sob o nº 23.712. Formada na Universidade de Direito de Uberaba. Pós-graduada em Direito Público pela Faculdade Fortium – Brasília/DF. Coordenadora do Setor de Prazos do Escritório Januário Advocacia Militar, desde junho de 2012. www.januarioadvocacia.com.br

[ii] Agravo em Recurso Especial nº 1.552.655 - DF (2019/0220529-0) – www.stj.jus.br

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Muito bom!
Finalmente a Justiça fez Justiça aos humildes e desemparados que buscam na Justiça o reconhecimento em suas dignidades da pessoa humana e, assim, para quem têm sede de JUSTIÇA!
"A justiça não socorre àqueles que dormem.". continuar lendo